Pensamos saber algumas coisas sobre educação. Entre elas, se não somos educadores, pensamos que cabe ao educador educar, e aos outros exercer cada um a sua profissão.
Os pais e as mães consideram-se educadores, mas não tanto quanto os educadores profissionais. Acham-se amadores nesta área, quase incapazes de enfrentar situações que desafiam a rotina familiar.
Esquecemos -e alguns educadores profissionais também esquecem- que educar é tarefa para todos, de todos os instantes, e que cada um está equipado para cumpri-la.
Porque educar é uma questão, basicamente, de olhar. A arte de educar é uma arte do olhar.
É arte de dar luz. Temos perdido a mestria nesta arte, ao considerar o olho como um coletor de informações, um caçador de imagens, um orgão sugador de realidade. Apenas. Ficamos cegos ao fato de que temos a capacidade de construir mundos do tamanho e à imagem do nosso olhar : estreitos e maldosos ou vastos e belos.
O olho já foi comparado ao Sol, e como tal poderíamos reaprender a usá-lo; como um doador, um gerador de Vida, um amadurecedor de mundos, enfim, um “acendedor” : lembremos a postura hierática dos girassóis, fascinados pelo Sol, soberbos ao refleti-Lo.
Neste sentido, se o verdadeiro ato de olhar é generoso, ele exige cuidado e zelo (trata-se de recobrar a função solar do olho), para que raios não sejam interrompidos por julgamentos e, de maneira geral, para não interpor nada no trajeto da luz despendida: às vezes, o trajeto é longo, e o objeto distante (da nossa compreensão, por exemplo).
E paradoxalmente, querendo ser solar, o educador aprende a humildade e a paciência: ele aprende a não iluminar (e consequentemente alimentar) apenas o que sabe nomear e que aparece talvez como desvio, porque ele não subordina a distribuição da sua luz à sua capacidade de discernimento; ou seja, ele é capaz de discernir e oferecer luz ao irreconhecível, e ele tem assim a ousadia de lançá-la onde é mais necessária: na escuridão. Incansavelmente ele procura o lado positivo das coisas (às vezes minúscula faceta) para vivificá-lo. Ele optou pelo bem, e, talvez, pela dificuldade.
Educar então consiste em optar pelo difícil exercício de treinar e usar o nosso olho bom. Não se trata de ignorar o penoso, mas de incluí-lo numa perspectiva maior, porque a realidade é assim: infindável. Trata-se, sim, de perder o hábito de vislumbrar o “mal” (reduzindo a Vida a caricaturas, já que o olhar maléfico a coagula no instante de uma de suas inumeráveis configurações, retirando-lhe o dom mágico da transformação) onde se deveria ouvir gritos de socorro, sinais querendo ser compreendidos por um raio benevolente, capaz de pressentir o “bom” através dos gemidos da Vida pisoteada; e capaz de fortalecê-lo pelo simples fato de considerá-lo.
Trata-se de não produzir uma sombra onde o “crescente” (eventualmente procurando direção, como o galho da árvore através de seus muitos meandros) almejava por luz.
Trata-se de corrigir o nosso olhar quando, travado na sua própria mesquinhez, devolve o enxergado (porque há sempre uma devolução, mesmo que o queiramos ignorar) maculado pela recusa em compreender aquilo que, vivaz e procurando irromper, se esconde atrás do aparentemente “mau”, ou aquilo que estiver a murchar por falta de luz e calor (humano, no caso).
Nossa tarefa de educar consiste em desbastar as trevas com o nosso olhar, não em fixar limites e normas ao crescimento e ao progresso, com um olhar que julga, nomeia, e, no fim das contas, prende.
Ninguém tem a obrigação ou a capacidade de entender tudo. (O entendimento intelectual aliás é algo muitas vezes empobrecedor). Mas de compreensão que abraça, oferece luz e calor ao inimaginável, todos nós somos capazes.
Todos nós somos capazes de ponderar sobre maus olhares que assentaram más interpretações tais como: mentira, egoísmo, inveja, maldade, crueldade, e condenaram almas a tão dolorosos meios de expressar a Vida, a distorções resultando de privação de luz, testemunhos do formidável poder de influência que temos uns sobre os outros. Testemunhos também da força incrível da Vida que habita em cada um de nós, e da Sua capacidade em descobrir e trilhar os caminhos os mais negros, curtos e insensatos, quando Lhe for barrado o acesso aos outros.
Todos nós somos capazes de não deter o nosso olhar sobre aquilo que não passa de ganga espessa encobrindo o metal precioso. Todos nós somos capazes de adubar o melhor, em vez de, movidos por sentimentos tais como reprovação ou indignação, que nos eximem de qualquer responsabilidade, cultivar o daninho com o nosso olhar adulterado, fisgador de aparências.
Podemos exercitar o nosso bom olhar (o equipamento do educador), refletindo sobre algumas dessas aparências. Assim, quando fisgamos, por exemplo, a inveja no outro (e nesse exercício de educar, o outro, o educando, o recipiendário virtual, são todos os que nos circundam, é o mundo inteiro ansiando por mais luz), por que não indagarmos: quão pouco enxergo e esclareço a beleza desta pessoa, de tal modo que só lhe resta invejar a dos outros (ou um sucedâneo desta)?
Quando fisgamos a maldade: quão pouco ofereço o modelo da minha bondade, de tal modo que só resta ao outro interpelá-la com o seu oposto, a maldade?
Quando se trata do egoísmo: quão pouco esquento o outro com o meu olhar, de tal modo que só lhe resta proporcionar este calor desolado a si mesmo?
E se for a mentira: quão pouco tenho clareado a imensidão que nos cerca, de tal modo que só resta ao outro mentir, para não sufocar no mundo acanhado que, mentindo-lhe, tenho construído em volta dele?
Ou ainda o furto e a venalidade: quão pouco aos corruptos foram proporcionados espectáculos de olhares benevolentes e doadores, de tal modo que só lhes resta explorar as sendas corrompedoras da apropriação indevida de falsos valores, já que os verdadeiros não lhes foram aclarados e não puderam vingar?
Este exercício poderá ser modulado até o infinito, porque o desafio de educar não exige menos do que isso, e lembrando que:
“O olho não teria nunca percebido o Sol se não tivesse primeiro tomado a forma do Sol, da mesma maneira, a alma não pode enxergar a beleza sem ela mesma ter se tornado bela, e cada um há de se tornar belo e divino a fim de alcançar a visão da beleza e da divindade.” (Plotino)
Eis a dimensão do empreendimento: educar, alcançando a discrição da divina beleza dos atuais atores da Vida, nossos conTerrâneos.
Céline LORTHIOIS, Hermes, São Paulo, número 1, janeiro 1994.